No dia seguinte à sua morte, a Folha de S.Paulo resume sua meteórica e contravertida trajetória política.
Marcelo
Coelho
SÃO PAULO - Foi
muito triste o fim de Jânio Quadros. Em suas últimas fotografias estava
esvaído, inerme, sendo levado de um lado a outro de cadeira de rodas,
parecem impor a qualquer comentário uma exigência ainda mais intensa do
respeito que é de hábito dedicar aos mortos. As condenações e as críticas a
sua presença no quadro político brasileiro foram tão repetidas, e sem
dúvida, corretas, que de qualquer modo pareceria inútil, além de mostra de
insensibilidade e inconveniência, reproduzi-las aqui.
Se Jânio Quadros representou, com especial intensidade, uma real ameaça ao
progresso institucional do país, essa ameaça já se havia extinto,
pateticamente, com o encerramento de sua carreira política. Sua morte
suscita, assim, um sentimento mais concreto e pessoal do que quaisquer
considerações fundadas no cálculo político ou na divergência ideológica.
Deste ponto de vista, perdeu-se muito com o desaparecimento de Jânio - pois
nenhuma figura pública no Brasil foi tão artística, tão pessoal, tão
extravagante e infalível no instinto de manipular as massas quanto ele.
Fez do populismo o contrário da bonomia conciliatória; apostou no
ressentimento popular: na vontade de arbítrio e não de justiça, no teatro
de autoridade e não na prática frustrante e cotidiana do governo; nas
normas de fala culta e não na ladainha dos palanques; não empostava a voz,
esganiçava-a. Tudo parecia contribuir, enfim, para o irreal, para o
insensato e para o imprevisível; a dose de maquiavelismo envolvida nessa
atitude teria de ser tão grande, e seu conhecimento de psicologia das
massas tão profundo, que parece mais fiel acreditar que Jânio usava desses
recursos mais como se fossem uma segunda natureza do que como resultado de
uma estratégia pensada.
Nenhum laboratório de marketing seria capaz de inventá-lo; produziria,
possivelmente, uma figura oposta, ponto por ponto, à que ele representou. A
impressão que se tem é que Jânio descobriu estratos mais obscuros, mais
perversos, mais patológicos do que o desejável no comportamento do
eleitorado. Nisso estava o seu perigo, nisso estava sua genialidade -
talvez o único caso de genialidade entre os políticos brasileiros. Que
descanse em paz.
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Estilo
carismático marcou sua carreira
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Cabelo desalinhados e caspa nos ombros foram alguns símbolos cultivados
por Jânio em sua vida pública
Da Redação
Jânio costumava aparecer em público com os sapatos trocados. Nos palanques
das campanhas eleitorais levava uma vassoura, com a qual iria
"varrer" a corrupção do país. Esse símbolo o acompanhou durante
toda sua carreira política.
Entre os discursos de campanha, comia sanduíches de mortadela e pão com
banana, numa tentativa de identificar sua imagem com o eleitorado mais
pobre.
Jânio procurou sempre se diferenciar dos outros políticos. Vestia roupas
surradas, usava cabelos compridos, deixava a barba por fazer, os ombros
cheios de caspa e exibia caretas ao fotógrafos.
Sua sintaxe era um caso à parte. Em seus discursos, procurou sempre
utilizar um vocabulário apurado, recheado por frases de efeito. É um enigma
saber como conseguia se comunicar de forma eficiente com seus eleitores, a
maioria sem instrução escolar.
Chefe do Executivo, fosse municipal, estadual ou federal, o autoritarismo e
o carisma foram seus traços característicos. Seus bilhetinhos, com ordens a
subordinados, se tornaram célebres.
Segundo seus adversários, Jânio sempre demonstrou desprezo pelos partidos e
pelo Poder Legislativo. Ao longo de sua carreira trocou de legenda
sucessivamente.
Essas demonstrações de força aumentaram sua popularidade junto a diversos
segmentos do eleitorado. Jânio parecia diferente dos outros políticos.
Eleito pela segunda vez prefeito de São Paulo, em 1985, seu primeiro ato ao
tomar posse, em 1° de janeiro de 86, foi desinfetar a cadeira de seu
gabinete. Alguns dias antes da eleição, seu adversário de campanha,
Fernando Henrique Cardoso, candidato do PMDB, ocupou a cadeira para ser
fotografado pela imprensa.
Em mais um de seus vaivéns políticos, no seu último mandato como prefeito
literalmente "pendurou as chuteiras" na porta do gabinete, afirmado
que nunca mais seria candidato a um cargo público - o que provavelmente não
correspondia a suas intenções eleitorais, mas que acabou, com sua doença,
revelando-se como uma espécie de premonição política.
Na campanha para a eleição presidencial de 1989, passou várias semanas
transmitindo informações desencontradas sobre sua intenção de se candidatar
novamente à Presidência.
Em 27 de maio, com baixos índices de popularidade e abalado por problemas
de saúde, anunciou sua desistência com um discurso dramático feito da
sacada de sua casa no Morumbi, em São Paulo: "Peço-lhes paciência para
quem se retira por deficiência física irreparável da vida pública sem
retirar-se da condições de brasileiro", disse ele aos jornalistas.
Jânio fazia discurso contundentes e contraditórios. Para fazendeiros do
Nordeste era capaz de defender o latifúndio com a mesma tranquilidade com
que, para uma platéia estudantil, defendia a reforma agrária.
Dias antes de sua renúncia, em agosto de 1961, condecorou o ex-guerrilheiro
Ernesto "Che" Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul, no grau de
Grã-Cruz. Paralelamente, tomava medidas evitando que a Guiana se tornasse
um país comunista.
Jânio pode ser considerado um precursor do marketing político. Sabia criar
eventos que seriam notícia. O polêmico decreto que proibiu o uso de
biquínis quando era presidente teria sido uma inspiração sua para dar aos
jornais uma manchete no dia seguinte. Em sua volta à Prefeitura, saía pelas
ruas com sua assessoria militar multando motoristas infratores.
Não foram poucos seus atritos com a imprensa. Por exemplo, chegou a proibir
o acesso de jornalistas ao seu gabinete e a selecionar os jornais e
revistas para os quais daria entrevistas.
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Da
Reportagem LocalJânio da Silva Quadros fez sua primeira campanha por votos,
ainda aos 19 anos, sentado num barril. Era candidato a secretário do Centro
Acadêmico 11 de Agosto, da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo.
Ele prendeu a inscrição "vote em Jânio" no chapéu e sentou-se em
um barril na porta de entrada da faculdade. Para surpresa de seus
adversários, venceu. Na época, 1936, cursava o segundo ano de Direito.
Jânio nasceu em Campo Grande, no antigo Estado do Mato Grosso (atualmente
Mato Grosso do Sul), em 25 de janeiro de 1917.
No quarto ano de faculdade, conheceu Eloá, então com 15 anos, no Guarujá,
litoral de São Paulo. Eloá afirmaria depois: "Eu jamais conhecera um
homem tão feio quanto Jânio". Casaram-se em 1939, quando ele se
formou.
Jânio montou um escritório de advocacia e deu aula em escolas. Apoiado por
pais de alunos do colégio paulistano Dante Alighieri - onde era professor
de português -, decidiu se candidatar a vereador em 1947 pelo Partido
Democrata Cristão (PDC).
Com 1.707 votos, obteve uma suplência. Jânio tomou posse em 1948, após a
cassação dos vereadores comunistas, no governo do então presidente Eurico
Gaspar Dutra. O Congresso Nacional votou pela cassação de todos os
parlamentares comunistas, fazendo o Partido Comunista do Brasil entrar para
a clandestinidade.
Sua atuação, em quatro anos, foi polêmica. Apresentou 162 projetos de lei,
fez discursos violentos, envolveu-se em tumultos.
A fama aumentou tanto que Jânio foi eleito deputado estadual, em 1950, com
a maior votação. Ganhou o posto de líder do PDC. Em 1953, já estava em
campanha para prefeito de São Paulo.
Surgiram aí o slogan "o tostão contra o milhão" e a vassoura,
referências à corrupção que ele criticava no esquema político de Adhemar de
Barros. Foi eleito e tomou posse em 1953, aos 36 anos. Em 1954 se
candidatou ao governo paulista.
Lançado pelo PDC, Jânio acabou expulso do partido. Voltou à campanha
apoiado por partidos menores.
Enfrentou seu grande inimigo, Adhemar de Barros - enfraquecido pelas
disputas com o governador e ex-aliado político Lucas Nogueiro Garcez, que
lançou como candidato Prestes Maia. Jânio teve 660 mil votos, Adhemar 641
mil e Maia 492 mil.
Como governador de São Paulo, ele se beneficiou do Plano de Metas do então
presidente Juscelino Kubitschek, que pretendia atrair o capital
internacional para impulsionar a industrialização do país.
Jânio se aproveitou da situação e São Paulo foi o Estado mais beneficiado
com a implantação de parques industriais - como o parque automobilístico.
Nesse período, a receita tributária do Estado aumentou e o déficit
financeiro deixado pelos governos anteriores caiu.
Jânio investiu no Estado de São Paulo em estradas, saneamento básico,
usinas hidrelétricas e abastecimentos de água.
Em seu governo, Jânio adotou a política de rígido controle para abertura de
novos créditos. O sistema de arrecadação e de fiscalização tributária do
Estado foi reformulado para diminuir o impacto das sonegações nas contas
públicas.
No final de seu governo, conseguiu eleger seu secretário de Finanças,
Carvalho Pinto, com mais de 200 mil votos de diferença sobre Adhemar de
Barros.
Candidatou-se a deputado federal no Paraná, pelo PTB, e teve a maior
votação do Estado.
Jânio jamais foi ao Congresso Nacional. Aproveitou para viajar pelo mundo
com a mulher Eloá e a filha Dirce Tutu Quadros.
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No
governo, defendeu o 'saneamento moral'
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Da Redação
Nos sete meses em que ocupou a Presidência, Jânio tomou medidas para
promover o "saneamento moral da nação". Introduziu a censura "moralizadora"
na TV e proibiu as brigas de galo, a propaganda comercial em cinemas, os
desfiles de misses com maiôs "cavados", o uso de lança-perfume no
Carnaval e as corridas de cavalos em dias úteis.
Sua cruzada começou no dia da posse, em 31 de janeiro de 61, com a criação
de cinco comissões de sindicância para apurar irregularidades no governo de
Juscelino Kubitschek. Até 31 de março, Jânio criaria mais 28 comissões de
sindicância e inquérito, todas presididas por militares.
A intensa utilização de oficiais das Forças Armadas em sua administração e
o temor do envolvimento de nomes do governo anterior em processo acirrou a
hostilidade dos congressistas.
Jânio não fez questão de aprofundar relações com o Congresso. Ele recebia
deputados federais duas vezes por mês e senadores uma - em audiências
coletivas.
No plano externo, Jânio anunciou em 6 de fevereiro que adotaria uma
política de neutralidade. Jânio negou-se a apoiar a invasão de Cuba pelos
Estados Unidos no dia 16 de abril. Também enviou missões comerciais aos
países então comunistas URSS, Bulgária, Hungria). Pretendendo ampliar a
presença brasileira na África, o governo abriu embaixadas no Senegal, Gana,
Nigéria e Zaire.
Em 19 de agosto, condecorou Ernesto "Che" Guevara, então ministro
da Economia de Cuba, com a Ordem Nacional do Cruzeiro do sul, provocando
protestos dos militares e da UDN.
A política econômica de Jânio teve como principal objetivo o combate à
inflação, que havia atingido 30,6% ao ano em 1960, a redução da dívida
externa e a diminuição do déficit orçamentário. Apesar economia em 61 ainda
experimentar uma taxa de crescimento em torno de 7% ao não, o déficit
orçamentário atingia nesse ano a marca de Cr$ 113 bilhões (valores da
época).
O ministro da Fazenda, Clemente Mariani, adotou uma política recessiva. No
dia 13 de março, anunciou uma reforma cambial. O cruzeiro foi desvalorizado
em 100% em relação ao dólar.
Foram eliminados os subsídios na importação do trigo (o que provocou um
aumento no preço do pão), petróleo (aumento da gasolina) e dos bens de
produção sem silimar nacional.
Jânio enviou ao Congresso dois projetos polêmicos - a lei antitruste, que
visava "embarcar a criação ou funcionamento de monopólios", e a
lei de remessa de lucros, que só foi aprovada no governo de João Goulart.
Seu relacionamento com o Congresso foi se deteriorando. Ele estava
praticamente isolado no Palácio do Planalto quando renunciou na manhã de 25
de agosto. Sua saída foi precipitada por um discurso do então governador do
antigo Estado da Guanabara, Carlos Lacerda (UDN).
Na noite anterior, Lacerda usou uma cadeia estadual de rádio e TV para
acusar Jânio de tramar um golpe contra o Congresso. Ele soube do discurso
na manhã do dia seguinte. Reuniu auxiliares e disse que iria
renunciar.
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